Friday, June 23, 2006

=RESSACA=

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Quase todo dia é desconhecido, já outros tem-se a certeza da previsibilidade. Chatice, mesmice e outras “ices”. Esse era do segundo tipo, e nada havia o que pudesse ser feito para que de alguma forma fosse de um céu mais limpo, um dia mais cheio de prazeres. Um dia de ovos de pardal prestes a se abrir no ninho roubado de uma rolinha. Ontem mesmo os ovinhos estavam lá, e para não impregnar o dia de leviandade, que lhe parece uma preocupação bem prazeirosa como a dúvida entre mais meia ou uma hora de sono naquela tarde sem graça – e o que mais esperar do dia que começa depois do almoço, que aliás simplesmente não existiu? Dois alka-seltzers valem o almoço, porquê a náusea fica, grudada em algum lugar vazio entre alma e estômago.


Para não olhar pra fora do apartamento e deparar com uma vitrine de desgraças anunciadas ou alguma coisa bucólica e fofa que pode te deixar de incurável mal-humor, melhor pensar que ainda é muito cedo e que o mundo lá fora tem algum impedimento à sua integridade como, por exemplo, gente. Mas memórias são indeléveis e quando você menos espera, sua fantasia psicótica se transforma em mais uma razão para que você se ache realmente mais sensível do que a maioria das pessoas, num movimento de auto-comiseração que faz todo o sentido do mundo naquele instante e te enche de alívio por ser ao menos uma explicação pra tanta agonia. Sempre foi assim. Prazeres idiotas e pessoas desagradáveis que dão a sensação da morte, da vida se esvaindo como um sopro leve e você achando graça de tudo aquilo porquê com o medo do perigo você consola sua pequeneza, se agracia com seus delírios acreditando apenas na parte da história que te convém. Um dia ou outro isso deve acontecer com qualquer pessoa.

Olhar distante para a janela ainda não é opção válida pois qualquer fresta de luz poderia desmanchar seus planos e convidá-lo a espiar o “lá-fora de esquisitices e outras ices” das quais é melhor não tomar conhecimento, principalmente quando um apartamento fica tão próximo um do outro, as janelas da sala frente a frente, a vida privada escancarada. Das últimas vezes que tentou olhar para fora viu a velha quase careca sentada, poucos cabelos com tinta a e assistindo a algum programa religioso na televisão – e o volume altíssimo não deixava dúvida do que se tratava, apesar do aparelho ficar de costas para a janela e não se enxergar nada que estivesse passando na tela. Com cuidado ficou a espiar e viu que ela balbuciava baixinho as canções, daquele jeito bem de velha mesmo, batendo os lábios como se estivessem tremendo igual faziam as benzedeiras do interior, daquelas que curam saudade de casa e dor de barriga orando com uma mão pousando levemente sob sua cabeça. E ainda por cima velhos são flácidos, enrugados e cheiram a alfazema.

Abriu a janela, os dois ovinhos haviam se quebrado, e não estavam mais lá - e mais um dia difícil começado na metade havia sido cuidadosamente elaborado.

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